Antônio Wanderley de Melo Corrêa2
Manoel
Bomfim foi um dos maiores intelectuais sergipanos de todos os tempos e um dos
maiores do Brasil nas três primeiras décadas do século 20. Segundo um de seus biógrafos,
o alagoano Ronaldo Conde Aguiar, o “esquecimento” de sua obra, profunda e
volumosa, e de sua personalidade marcante, se deveram a algumas condições: a
sua não aceitação em fazer parte dos 40 primeiros imortais da Academia Brasileira
de Letras, convidado pelo fundador Machado de Assis; à sua crítica furiosa,
radical (de raiz) e consistente às elites da República Velha; a não adesão do
intelectual sergipano à Revolução de 1930, que para ele “não traz substituição
de gentes, nem de programas, nem de processos”; não ter absolvido o Socialismo
como teoria para sua obra nem para a sua militância, não obstante ter sido um
simpatizante da Revolução Bolchevique de 1917. Sobre o Socialismo, Bomfim
pontificou: “seria um sistema perfeito, se os homens fossem perfeitos”.
Este
escrito é uma pequena contribuição para o (re) conhecimento sobre a vida e a
obra do médico, psicólogo, escritor, pedagogo, professor, homem público,
sociólogo e historiador sergipano, desconhecido da imensa maioria dos seus
conterrâneos do presente.
Manoel
José do Bomfim nasceu em Aracaju em oito de agosto de 1868, filho de um
próspero comerciante da Rua da Aurora (atual Avenida Rio Branco) e proprietário
do engenho Quiçamã (São Cristóvão): Paulino José do Bomfim e de Maria Joaquina
do Bomfim. “Nezinho” foi o quarto dos 13 filhos do casal. Por volta dos 12 anos
foi morar no engenho Quiçamã, ajudando o pai a administrar a propriedade. Aos
16 anos, comunicou aos genitores a sua intenção de sair de Sergipe para se
tornar médico.
Em
1886, o jovem Manoel José, com apenas 18 anos, ingressou na Faculdade de
Medicina da Bahia. Dois anos depois, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde
conheceu o poeta Olavo Bilac, tornando-se seu amigo até a morte deste em 1918.
A dupla Bomfim e Bilac iria, nos 30 anos seguintes, realizar vários projetos
literários e educativos. Em 1890, com 22 anos, concluiu o curso de Medicina com
a tese “Das Nephrites”.
O ano de 1891 foi significativo para Bomfim. Foi nomeado
médico da Secretaria de Polícia do Rio de Janeiro e casou-se com Natividade
Aurora de Oliveira. No ano seguinte, foi promovido a tenente-cirurgião da
Brigada Militar (atual Polícia Militar) da capital federal de então. Naquele
período escreveu seus primeiros artigos para a imprensa, atividade a qual realizou
por quase toda a vida.
Em 1894, com 26 anos, Bomfim perdeu seu pai Paulino José
e, meses depois, sua filha Maria de três anos, durante uma epidemia de tifo.
Desiludido com a Medicina abandonou a profissão.
No ano de 1897 foi nomeado diretor-geral do Pedagogium,
uma instituição federal criada por Benjamim Constant para a profissionalização
e o aperfeiçoamento de professores públicos e particulares. Ao mesmo tempo
lecionava a disciplina Instrução Moral e Cívica na Escola Normal, de formação
de professores do Curso Primário, do Rio de Janeiro. Ainda lecionou nesta
instituição as disciplinas Pedagogia e Psicologia Aplicada à Educação. No ano
seguinte, foi nomeado o diretor da Instrução Pública (cargo equivalente ao de
secretário de educação na atualidade) do Distrito Federal. No Pedagogium,
Bomfim instalou o primeiro Laboratório de Psicologia Experimental do Brasil.
Por
ter se tornado um homem público no campo da educação, ter escrito vários livros
para o trabalho educativo, ser formador de professores e um defensor incansável
da instrução sistemática para todos os brasileiros, se autodenominava um
“professor de professores”. E o foi até os seus últimos dias. No seu derradeiro
livro tratou da educação brasileira, como informaremos adiante.
Nos anos seguintes publicou, em parceria com Olavo Bilac,
Livro de Composição para o Curso
Complementar das Escolas Primárias (1899) e Livro de Leitura para o Curso Complementar das Escolas Primárias (1901).
No biênio 1902/1903 estudou Psicologia em Paris, com
bolsa do Governo Federal.
Após
ser solicitado por jornalistas parisienses para que escrevesse um artigo sobre
a América Latina e o Brasil (em 1903), Bomfim escreveu um livro: América Latina Males de Origem, o seu
primeiro título histórico-sociológico, publicado em 1905, tendo o autor a idade
de 37 anos.
América Latina foi um livro original, contrário à visão
preconceituosa que os europeus tinham dos latino-americanos, associando a
mestiçagem a uma suposta inferioridade física, intelectual e moral. Visão esta,
aceita e reproduzida por muitos intelectuais brasileiros de então. Apesar da
boa aceitação, o livro foi criticado e desqualificado violentamente por Silvio
Romero, conterrâneo de Bomfim. Romero era um dos maiores representantes das
teorias racistas de superioridade da “raça” ariana ou germânica diante das
“raças” mestiças locais. Para ele, os mestiços eram “uma sub-raça brasileira
cruzada”. Darcy Ribeiro (ver fontes) adjetivou América Latina como “um livro extraordinário”.
Naquele
mesmo ano (1905), junto com Luis Bartolomeu e Renato de Castro, fundou a
revista infantil O Tico-Tico. A
primeira revista em quadrinhos semanal e colorida do Brasil. Foi um sucesso
desde a sua primeira edição. Foi publicada por quase 57 anos, até fevereiro de
1962, totalizando 2097 edições, divertindo e educando várias gerações de
brasileiros.
Em
1906, Bomfim propôs ao prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, a idéia da
composição de um hino à Bandeira Nacional. O projeto foi concretizado, o Hino à
Bandeira, Letra de Olavo Bilac e música de Francisco Braga, espalhou-se pelo
Brasil e foi oficializado pela República em 19 de novembro daquele ano.
Na legislatura 1907/1908, Bomfim foi eleito deputado
federal, formando com Felisbelo Freire, Gilberto Amado e Silvio Romero uma
“prestigiosa bancada sergipana”. Naquele período, além de parlamentar, exerceu
outra vez o cargo de chefe da Instrução Pública do Distrito Federal (Rio de
Janeiro).
Em março de 1908, o deputado federal Manoel Bomfim chegou
a Aracaju com a família, Natividade e seu filho Aníbal. Veio visitar sua mãe e
irmãos, reunir-se com políticos correligionários da capital e do interior,
agradecer os votos que o elegeram e reorganizar os negócios da família, entre
eles a venda do engenho Quiçamã, em função da crise da produção açucareira que
atingia o estado. Em 14 de fevereiro de 1909, após a derrota pleiteando a
reeleição, Bomfim e família embarcaram no navio Satélite de volta ao Rio de
Janeiro. Não mais voltaria a Sergipe.
Em 1910, aos 42 anos, publicou, em parceria com Bilac, o
livro de leitura escolar Através do
Brasil, que foi lido por diversas gerações de brasileiros nos bancos
escolares ao longo do século 20, tendo 66 edições até 1965. Um marco na
literatura escolar brasileira. Da geração dos nossos avós para trás, todas as
crianças brasileiras que foram à escola, aperfeiçoaram a leitura se deliciando
com as aventuras dos garotos Carlos, Alfredo e Juvêncio de Através do Brasil.
Em 1911, o “professor de professores” reassumiu a direção
do Pedagogium, ficando até 1919, quando foi extinto. Por 19 anos dirigiu aquela
instituição.
Em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, Bomfim escreveu
dois artigos no Jornal do Comércio (do Rio de Janeiro) intitulados A Obra do Germanismo, nos quais criticou
os interesses geopolíticos da Alemanha e a responsabilidade daquele país em
deflagrar o conflito. Transformou os artigos em um livreto e destinou o rendimento
da venda da publicação à Cruz Vermelha da Bélgica, país invadido brutalmente
pelo exército alemão. Ao final da guerra, em 22 de novembro de 1918, foi
condecorado pelo rei Alberto I da Bélgica com a Ordem Leopoldo.
Outras publicações
de Bomfim: Lições de Pedagogia: Teoria e
Prática de Educação (1915); Noções de
Psicologia Escolar (1916); Primeiras
Saudades (1919); A Cartilha, Lições e Leituras, Crianças e Homens, Livro dos Mestres: com Aplicações à
Linguagem do Ensino Primário (1922); Estudo
do Símbolo no Pensamento e na linguagem (1923); O Método dos Testes (1928) em parceria com Ofélia e Narbal Fontes.
Foi
redator de várias revistas e colaborou com alguns dos maiores jornais da época:
Notícia, Tribuna, Jornal do Comércio e Paiz.
Entre
os muitos amigos ilustres do “professor de professores” sergipano,
destacaram-se: Olavo Bilac, Alcindo Guanabara, Aluísio Azevedo, Arthur Azevedo,
Paula Nei, Luis Murat, Pardal Mallet, Guimarães Passos, Raul Pompéia, Humberto
de Campos, Gilberto Amado, Coelho Neto, Pinheiro Machado, Graça Aranha, Juracy
Camargo e Medeiros de Albuquerque.
Não
obstante possuir uma mente brilhante e enorme capacidade de trabalho, Bomfim
era uma personalidade de temperamento forte, teimoso, intransigente, rigoroso
no julgamento, inclusive consigo mesmo. Como a contradição é uma marca do
espírito humano, ele teve fama de sedutor e de ter relacionamentos paralelos ao
casamento com a companheira de toda a vida: Natividade Aurora.
No ano de 1926, começou a ter problemas com a saúde. Em
1928, descobriu que estava com câncer na próstata. Percebendo que lhe restava
pouco tempo de vida, dedicou-se corajosamente a escrever. Iniciava-se ali a
fase mais brilhante de sua carreira de escritor. Entre 1928 e 1932, os últimos
lustros de sua vida, o pedagogo sergipano escreveu a trilogia
histórico-sociológica que o consagrou, além de mais um título sobre educação.
Não queria morrer sem deixar prontas as obras sobre o Brasil que tanto amava.
Sofreu
terrivelmente com a doença evoluindo para a metástase. Foi internado várias vezes
e sofreu, nada mais nada menos que, 14 cirurgias. Vivia a maior parte do tempo
deitado, sentindo dores atrozes por não aceitar sedativos, debilitado ao
extremo. Mesmo assim, não abandonava a máquina de escrever.
Num
esforço heróico, escreveu e publicou O
Brasil na América (1929) com mais de 400 páginas; O Brasil na História (1930) com quase 600 páginas; e O Brasil Nação (1931), este último em
dois volumes.
Com
as forças físicas praticamente anuladas, produziu seu último trabalho Cultura e Educação do Povo Brasileiro prostrado
no seu catre de dor e de idéias, ditando ao teatrólogo Juracy Camargo
(autor da peça Deus lhe Pague). O
livro foi publicado postumamente em 1933 e premiado pela Academia Brasileira de
Letras.
Finalmente, na noite de 21 de abril (Dia de Tiradentes, o
mártir da Independência) de 1932, Manoel José do Bomfim deu seu último suspiro.
Tinha 64 anos. No dia seguinte, 22 de abril (Dia oficial do achamento do
Brasil), o cortejo fúnebre saiu do bairro de Santa Teresa em direção ao
Cemitério São João Batista. O sepultamento aconteceu no final daquela tarde
nublada, bem simbolizando a tristeza dos familiares e amigos do “professor de
professores” sergipano. Até o presidente da República, Getúlio Vargas, enviou
representante.
Os biógrafos e estudiosos da obra de Bomfim são
praticamente unânimes em afirmarem que o seu esquecimento não foi por mera obra
do acaso ou por simples displicência da memória coletiva. Por ter sido um homem
à frente de seu tempo, foi rejeitado e amaldiçoado pelas elites conservadoras e
atrasadas da República Velha oligárquica e repressora.
Pela
profundidade, originalidade, amplitude e atualidade de sua obra, em função das
idéias antiimperialistas, anti-racistas, democráticas, de educação pública
generalizada, por criticar os pífios investimentos governamentais em educação,
por propor uma escola sem castigos físicos e humilhantes e com uma educação
humanizante e prazerosa, além do “desmesurado amor pelo Brasil”, nas últimas
décadas vêm ocorrendo o redescobrimento de Manoel Bomfim. Diversos intelectuais
vêm se debruçando sobre os escritos do sociólogo sergipano. Um número
significativo de teses e artigos são produzidos por historiadores, sociólogos,
geógrafos, psicólogos e pedagogos nas universidades e institutos de pesquisa.
Editoras do porte da Topbooks e da Companhia das Letras reeditaram vários de
seus trabalhos, inclusive uma caudalosa biografia do “professor de professores”
com 560 páginas (AGUIAR, 2000).
Vários
intelectuais sergipanos vêm citando, analisando e tendo como referência teórica
a obra grandiosa do conterrâneo aqui biografado. Eis alguns deles: Ivo do
Prado, Ariosvaldo Figueiredo, Maria Thétis Nunes, Terezinha Oliva, Marta Cruz,
José Vieira da Cruz e Antônio Bittencourt.
Em
2010, a deputada estadual Ana Lúcia fez uma propositura solicitando a
transformação do prédio onde nasceu e viveu por 12 anos o “professor de
professores” em um “Memorial Educador Manoel Bomfim”. O imóvel é situado na
Avenida Rio Branco (A “Rua da Frente”, antiga “Rua da Aurora”) próximo à Praça
Fausto Cardoso em Aracaju, onde abrigou o antigo jornal Diário de Aracaju e a
Rádio Jornal AM. O objetivo do Memorial é preservar e tornar reviva a história
da educação em Sergipe.
Para concluir, pequenos fragmentos do pensamento de
Bomfim sobre dois temas atualíssimos: o meio ambiente e a democracia, numa
época na qual quase ninguém se importava com a devastação da natureza, enquanto
a democracia no Brasil oligárquico era uma palavra sem muito sentido.
“A
natureza é inesgotável, com a condição, porém, de que a estudemos, e que
alcancemos aproveitá-la e explorá-la, sem que a inutilizemos. (...) pensem,
então, nas ferozes devastações dos nossos bosques e matas, tão úteis à vida;
pensem no que se tem perdido, da uberdade do nosso solo, nos incêndios bárbaros
que a ignorância da nossa lavoura acende todos os dias, desde quatro séculos,
por sobre milhares de léguas quadradas de terras, que, férteis e virgens ontem,
(...), estão hoje convertidas em campos ásperos, agrestes, nus, que só muito
trabalho e muita ciência poderão restituir à cultura”. (in América Latina: Males de Origem, 1905).
“A
democracia, voz da maioria, converteu-se em regime de exploração da maioria
trabalhadora, (...). Senhora dele [o capital], uma minoria pode subordinar o
aparelho democrático aos interesses capitalistas e, arrimada nos direitos
patrimoniais, pessoais, exige a garantias dos privilégios de fato em que está
montada, privilégios que significam justamente o sacrifício do grande número”.
(in O Brasil Nação, 1931).
1 – Artigo publicado no
Jornal do Dia, Aracaju: 08 e 09 ago 2012. P. 04.
2 - Licenciado em História
pela UFS, professor das redes públicas estadual (SEED) e municipal de Aracaju
(SEMED) e co-autor do livro didático Sergipe Nosso Estado.
FONTES:
AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido: Tempo, Vida e Obra de
Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
BILAC, Olavo. BOMFIM, Manoel.
Através do Brasil: Prática da Língua
Portuguesa. Coleção Retratos do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
BOMFIM, Manoel. América
Latina: Males de Origem (Prefácios de Darcy Ribeiro, Franklin de Oliveira e
Azevedo Amaral). 4ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
BOMFIM, Manoel. O Brasil Nação: Realidade da Soberania
Brasileira (Prefácios de Wilson Martins e Ronaldo Conde Aguiar). 2ª edição.
Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: Caracterização da
Formação Brasileira (Prefácio de Maria Thétis Nunes). 2ª edição. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1997.
CRUZ, Jose Vieira da;
BITTENCOURT JUNIOR, Antonio (Organizadores). Manoel Bomfim e a América Latina. Aracaju: Editora Diário Oficial,
2010.
SANGALLI, Adriana. Prédio do
Antigo Diário de Aracaju Pode se Tornar Memorial Manoel Bomfim. Agência de
Notícias da Assembléia Legislativa de Sergipe (Internet). 10 fev. 2011.
SANTANA, Sonia Cristina
Pimentel de. Manoel Bomfim: Resgate de um
Educador Comprometido com a Causa da Instrução Pública Brasileira. Boletim
Informativo. Ano IV. Nº VIII. São Cristóvão: UFS/Departamento de Ciências
Sociais/NPSE, agosto a dezembro de 1999.