terça-feira, 14 de agosto de 2012

Manoel Bomfim: o "professor de professores" sergipano¹



Antônio Wanderley de Melo Corrêa2
           
Manoel Bomfim foi um dos maiores intelectuais sergipanos de todos os tempos e um dos maiores do Brasil nas três primeiras décadas do século 20. Segundo um de seus biógrafos, o alagoano Ronaldo Conde Aguiar, o “esquecimento” de sua obra, profunda e volumosa, e de sua personalidade marcante, se deveram a algumas condições: a sua não aceitação em fazer parte dos 40 primeiros imortais da Academia Brasileira de Letras, convidado pelo fundador Machado de Assis; à sua crítica furiosa, radical (de raiz) e consistente às elites da República Velha; a não adesão do intelectual sergipano à Revolução de 1930, que para ele “não traz substituição de gentes, nem de programas, nem de processos”; não ter absolvido o Socialismo como teoria para sua obra nem para a sua militância, não obstante ter sido um simpatizante da Revolução Bolchevique de 1917. Sobre o Socialismo, Bomfim pontificou: “seria um sistema perfeito, se os homens fossem perfeitos”.
Este escrito é uma pequena contribuição para o (re) conhecimento sobre a vida e a obra do médico, psicólogo, escritor, pedagogo, professor, homem público, sociólogo e historiador sergipano, desconhecido da imensa maioria dos seus conterrâneos do presente.         
Manoel José do Bomfim nasceu em Aracaju em oito de agosto de 1868, filho de um próspero comerciante da Rua da Aurora (atual Avenida Rio Branco) e proprietário do engenho Quiçamã (São Cristóvão): Paulino José do Bomfim e de Maria Joaquina do Bomfim. “Nezinho” foi o quarto dos 13 filhos do casal. Por volta dos 12 anos foi morar no engenho Quiçamã, ajudando o pai a administrar a propriedade. Aos 16 anos, comunicou aos genitores a sua intenção de sair de Sergipe para se tornar médico.
Em 1886, o jovem Manoel José, com apenas 18 anos, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia. Dois anos depois, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde conheceu o poeta Olavo Bilac, tornando-se seu amigo até a morte deste em 1918. A dupla Bomfim e Bilac iria, nos 30 anos seguintes, realizar vários projetos literários e educativos. Em 1890, com 22 anos, concluiu o curso de Medicina com a tese “Das Nephrites”.
            O ano de 1891 foi significativo para Bomfim. Foi nomeado médico da Secretaria de Polícia do Rio de Janeiro e casou-se com Natividade Aurora de Oliveira. No ano seguinte, foi promovido a tenente-cirurgião da Brigada Militar (atual Polícia Militar) da capital federal de então. Naquele período escreveu seus primeiros artigos para a imprensa, atividade a qual realizou por quase toda a vida.
            Em 1894, com 26 anos, Bomfim perdeu seu pai Paulino José e, meses depois, sua filha Maria de três anos, durante uma epidemia de tifo. Desiludido com a Medicina abandonou a profissão.
            No ano de 1897 foi nomeado diretor-geral do Pedagogium, uma instituição federal criada por Benjamim Constant para a profissionalização e o aperfeiçoamento de professores públicos e particulares. Ao mesmo tempo lecionava a disciplina Instrução Moral e Cívica na Escola Normal, de formação de professores do Curso Primário, do Rio de Janeiro. Ainda lecionou nesta instituição as disciplinas Pedagogia e Psicologia Aplicada à Educação. No ano seguinte, foi nomeado o diretor da Instrução Pública (cargo equivalente ao de secretário de educação na atualidade) do Distrito Federal. No Pedagogium, Bomfim instalou o primeiro Laboratório de Psicologia Experimental do Brasil.
Por ter se tornado um homem público no campo da educação, ter escrito vários livros para o trabalho educativo, ser formador de professores e um defensor incansável da instrução sistemática para todos os brasileiros, se autodenominava um “professor de professores”. E o foi até os seus últimos dias. No seu derradeiro livro tratou da educação brasileira, como informaremos adiante.
            Nos anos seguintes publicou, em parceria com Olavo Bilac, Livro de Composição para o Curso Complementar das Escolas Primárias (1899) e Livro de Leitura para o Curso Complementar das Escolas Primárias (1901).
            No biênio 1902/1903 estudou Psicologia em Paris, com bolsa do Governo Federal.
Após ser solicitado por jornalistas parisienses para que escrevesse um artigo sobre a América Latina e o Brasil (em 1903), Bomfim escreveu um livro: América Latina Males de Origem, o seu primeiro título histórico-sociológico, publicado em 1905, tendo o autor a idade de 37 anos.
América Latina foi um livro original, contrário à visão preconceituosa que os europeus tinham dos latino-americanos, associando a mestiçagem a uma suposta inferioridade física, intelectual e moral. Visão esta, aceita e reproduzida por muitos intelectuais brasileiros de então. Apesar da boa aceitação, o livro foi criticado e desqualificado violentamente por Silvio Romero, conterrâneo de Bomfim. Romero era um dos maiores representantes das teorias racistas de superioridade da “raça” ariana ou germânica diante das “raças” mestiças locais. Para ele, os mestiços eram “uma sub-raça brasileira cruzada”. Darcy Ribeiro (ver fontes) adjetivou América Latina como “um livro extraordinário”.
Naquele mesmo ano (1905), junto com Luis Bartolomeu e Renato de Castro, fundou a revista infantil O Tico-Tico. A primeira revista em quadrinhos semanal e colorida do Brasil. Foi um sucesso desde a sua primeira edição. Foi publicada por quase 57 anos, até fevereiro de 1962, totalizando 2097 edições, divertindo e educando várias gerações de brasileiros.
Em 1906, Bomfim propôs ao prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, a idéia da composição de um hino à Bandeira Nacional. O projeto foi concretizado, o Hino à Bandeira, Letra de Olavo Bilac e música de Francisco Braga, espalhou-se pelo Brasil e foi oficializado pela República em 19 de novembro daquele ano. 
            Na legislatura 1907/1908, Bomfim foi eleito deputado federal, formando com Felisbelo Freire, Gilberto Amado e Silvio Romero uma “prestigiosa bancada sergipana”. Naquele período, além de parlamentar, exerceu outra vez o cargo de chefe da Instrução Pública do Distrito Federal (Rio de Janeiro).
            Em março de 1908, o deputado federal Manoel Bomfim chegou a Aracaju com a família, Natividade e seu filho Aníbal. Veio visitar sua mãe e irmãos, reunir-se com políticos correligionários da capital e do interior, agradecer os votos que o elegeram e reorganizar os negócios da família, entre eles a venda do engenho Quiçamã, em função da crise da produção açucareira que atingia o estado. Em 14 de fevereiro de 1909, após a derrota pleiteando a reeleição, Bomfim e família embarcaram no navio Satélite de volta ao Rio de Janeiro. Não mais voltaria a Sergipe.
            Em 1910, aos 42 anos, publicou, em parceria com Bilac, o livro de leitura escolar Através do Brasil, que foi lido por diversas gerações de brasileiros nos bancos escolares ao longo do século 20, tendo 66 edições até 1965. Um marco na literatura escolar brasileira. Da geração dos nossos avós para trás, todas as crianças brasileiras que foram à escola, aperfeiçoaram a leitura se deliciando com as aventuras dos garotos Carlos, Alfredo e Juvêncio de Através do Brasil.
            Em 1911, o “professor de professores” reassumiu a direção do Pedagogium, ficando até 1919, quando foi extinto. Por 19 anos dirigiu aquela instituição.
            Em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, Bomfim escreveu dois artigos no Jornal do Comércio (do Rio de Janeiro) intitulados A Obra do Germanismo, nos quais criticou os interesses geopolíticos da Alemanha e a responsabilidade daquele país em deflagrar o conflito. Transformou os artigos em um livreto e destinou o rendimento da venda da publicação à Cruz Vermelha da Bélgica, país invadido brutalmente pelo exército alemão. Ao final da guerra, em 22 de novembro de 1918, foi condecorado pelo rei Alberto I da Bélgica com a Ordem Leopoldo.


             Outras publicações de Bomfim: Lições de Pedagogia: Teoria e Prática de Educação (1915); Noções de Psicologia Escolar (1916); Primeiras Saudades (1919); A Cartilha, Lições e Leituras, Crianças e Homens, Livro dos Mestres: com Aplicações à Linguagem do Ensino Primário (1922); Estudo do Símbolo no Pensamento e na linguagem (1923); O Método dos Testes (1928) em parceria com Ofélia e Narbal Fontes.
Foi redator de várias revistas e colaborou com alguns dos maiores jornais da época: Notícia, Tribuna, Jornal do Comércio e Paiz.
Entre os muitos amigos ilustres do “professor de professores” sergipano, destacaram-se: Olavo Bilac, Alcindo Guanabara, Aluísio Azevedo, Arthur Azevedo, Paula Nei, Luis Murat, Pardal Mallet, Guimarães Passos, Raul Pompéia, Humberto de Campos, Gilberto Amado, Coelho Neto, Pinheiro Machado, Graça Aranha, Juracy Camargo e Medeiros de Albuquerque.
Não obstante possuir uma mente brilhante e enorme capacidade de trabalho, Bomfim era uma personalidade de temperamento forte, teimoso, intransigente, rigoroso no julgamento, inclusive consigo mesmo. Como a contradição é uma marca do espírito humano, ele teve fama de sedutor e de ter relacionamentos paralelos ao casamento com a companheira de toda a vida: Natividade Aurora.   
            No ano de 1926, começou a ter problemas com a saúde. Em 1928, descobriu que estava com câncer na próstata. Percebendo que lhe restava pouco tempo de vida, dedicou-se corajosamente a escrever. Iniciava-se ali a fase mais brilhante de sua carreira de escritor. Entre 1928 e 1932, os últimos lustros de sua vida, o pedagogo sergipano escreveu a trilogia histórico-sociológica que o consagrou, além de mais um título sobre educação. Não queria morrer sem deixar prontas as obras sobre o Brasil que tanto amava.
Sofreu terrivelmente com a doença evoluindo para a metástase. Foi internado várias vezes e sofreu, nada mais nada menos que, 14 cirurgias. Vivia a maior parte do tempo deitado, sentindo dores atrozes por não aceitar sedativos, debilitado ao extremo. Mesmo assim, não abandonava a máquina de escrever.
Num esforço heróico, escreveu e publicou O Brasil na América (1929) com mais de 400 páginas; O Brasil na História (1930) com quase 600 páginas; e O Brasil Nação (1931), este último em dois volumes.
Com as forças físicas praticamente anuladas, produziu seu último trabalho Cultura e Educação do Povo Brasileiro prostrado no seu catre de dor e de idéias, ditando ao teatrólogo Juracy Camargo (autor da peça Deus lhe Pague). O livro foi publicado postumamente em 1933 e premiado pela Academia Brasileira de Letras.
            Finalmente, na noite de 21 de abril (Dia de Tiradentes, o mártir da Independência) de 1932, Manoel José do Bomfim deu seu último suspiro. Tinha 64 anos. No dia seguinte, 22 de abril (Dia oficial do achamento do Brasil), o cortejo fúnebre saiu do bairro de Santa Teresa em direção ao Cemitério São João Batista. O sepultamento aconteceu no final daquela tarde nublada, bem simbolizando a tristeza dos familiares e amigos do “professor de professores” sergipano. Até o presidente da República, Getúlio Vargas, enviou representante.
            Os biógrafos e estudiosos da obra de Bomfim são praticamente unânimes em afirmarem que o seu esquecimento não foi por mera obra do acaso ou por simples displicência da memória coletiva. Por ter sido um homem à frente de seu tempo, foi rejeitado e amaldiçoado pelas elites conservadoras e atrasadas da República Velha oligárquica e repressora.
Pela profundidade, originalidade, amplitude e atualidade de sua obra, em função das idéias antiimperialistas, anti-racistas, democráticas, de educação pública generalizada, por criticar os pífios investimentos governamentais em educação, por propor uma escola sem castigos físicos e humilhantes e com uma educação humanizante e prazerosa, além do “desmesurado amor pelo Brasil”, nas últimas décadas vêm ocorrendo o redescobrimento de Manoel Bomfim. Diversos intelectuais vêm se debruçando sobre os escritos do sociólogo sergipano. Um número significativo de teses e artigos são produzidos por historiadores, sociólogos, geógrafos, psicólogos e pedagogos nas universidades e institutos de pesquisa. Editoras do porte da Topbooks e da Companhia das Letras reeditaram vários de seus trabalhos, inclusive uma caudalosa biografia do “professor de professores” com 560 páginas (AGUIAR, 2000).
Vários intelectuais sergipanos vêm citando, analisando e tendo como referência teórica a obra grandiosa do conterrâneo aqui biografado. Eis alguns deles: Ivo do Prado, Ariosvaldo Figueiredo, Maria Thétis Nunes, Terezinha Oliva, Marta Cruz, José Vieira da Cruz e Antônio Bittencourt.
Em 2010, a deputada estadual Ana Lúcia fez uma propositura solicitando a transformação do prédio onde nasceu e viveu por 12 anos o “professor de professores” em um “Memorial Educador Manoel Bomfim”. O imóvel é situado na Avenida Rio Branco (A “Rua da Frente”, antiga “Rua da Aurora”) próximo à Praça Fausto Cardoso em Aracaju, onde abrigou o antigo jornal Diário de Aracaju e a Rádio Jornal AM. O objetivo do Memorial é preservar e tornar reviva a história da educação em Sergipe.


            Para concluir, pequenos fragmentos do pensamento de Bomfim sobre dois temas atualíssimos: o meio ambiente e a democracia, numa época na qual quase ninguém se importava com a devastação da natureza, enquanto a democracia no Brasil oligárquico era uma palavra sem muito sentido. 
“A natureza é inesgotável, com a condição, porém, de que a estudemos, e que alcancemos aproveitá-la e explorá-la, sem que a inutilizemos. (...) pensem, então, nas ferozes devastações dos nossos bosques e matas, tão úteis à vida; pensem no que se tem perdido, da uberdade do nosso solo, nos incêndios bárbaros que a ignorância da nossa lavoura acende todos os dias, desde quatro séculos, por sobre milhares de léguas quadradas de terras, que, férteis e virgens ontem, (...), estão hoje convertidas em campos ásperos, agrestes, nus, que só muito trabalho e muita ciência poderão restituir à cultura”. (in América Latina: Males de Origem, 1905).
“A democracia, voz da maioria, converteu-se em regime de exploração da maioria trabalhadora, (...). Senhora dele [o capital], uma minoria pode subordinar o aparelho democrático aos interesses capitalistas e, arrimada nos direitos patrimoniais, pessoais, exige a garantias dos privilégios de fato em que está montada, privilégios que significam justamente o sacrifício do grande número”. (in O Brasil Nação, 1931).

1 – Artigo publicado no Jornal do Dia, Aracaju: 08 e 09 ago 2012. P. 04.
2 - Licenciado em História pela UFS, professor das redes públicas estadual (SEED) e municipal de Aracaju (SEMED) e co-autor do livro didático Sergipe Nosso Estado.

FONTES:
AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido: Tempo, Vida e Obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
BILAC, Olavo. BOMFIM, Manoel. Através do Brasil: Prática da Língua Portuguesa. Coleção Retratos do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BOMFIM, Manoel. América Latina: Males de Origem (Prefácios de Darcy Ribeiro, Franklin de Oliveira e Azevedo Amaral). 4ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.
BOMFIM, Manoel. O Brasil Nação: Realidade da Soberania Brasileira (Prefácios de Wilson Martins e Ronaldo Conde Aguiar). 2ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: Caracterização da Formação Brasileira (Prefácio de Maria Thétis Nunes). 2ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
CRUZ, Jose Vieira da; BITTENCOURT JUNIOR, Antonio (Organizadores). Manoel Bomfim e a América Latina. Aracaju: Editora Diário Oficial, 2010.
SANGALLI, Adriana. Prédio do Antigo Diário de Aracaju Pode se Tornar Memorial Manoel Bomfim. Agência de Notícias da Assembléia Legislativa de Sergipe (Internet). 10 fev. 2011.
SANTANA, Sonia Cristina Pimentel de. Manoel Bomfim: Resgate de um Educador Comprometido com a Causa da Instrução Pública Brasileira. Boletim Informativo. Ano IV. Nº VIII. São Cristóvão: UFS/Departamento de Ciências Sociais/NPSE, agosto a dezembro de 1999.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A Lei 10.639 contribuindo para a desmistificação da democracia racial



Prof. Marcos Vinícius Melo dos Anjos1



No primeiro ano de governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei Federal 10.639/032, que determina a inclusão de conteúdos sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, que representou uma atitude de coragem na contribuição para o combate a discriminação, ao preconceito e o racismo histórico existente na sociedade brasileira.
Entendemos que em uma sociedade com práticas de cidadania, que contemple a equidade e o respeito mutuo, não necessitaria criar uma lei cujo objetivo é a valoração de uma etnia coparticipe da construção de uma nação. Entretanto, a nossa realidade é herdeira de um processo histórico de humilhação e opressão física e psicológica. Assim, é preciso revisitar a formatação da exploração colonialista europeia, mais de perto da coroa portuguesa, para entender melhor essa herança.
A transferência à força de um grande número de africanos escravizados marcou de forma negativa, a formação do nosso povo. Durante muito tempo os compêndios abordavam somente o viés econômico desse momento histórico. Porém, é preciso pensar no significado dessa ação para o próprio povo africano, que foi envolvido em uma verdadeira diáspora à revelia a sua vontade.
É preciso desvelar a contextualização de que os africanos trazidos para o continente americano eram desprovidos de estrutura cognitiva, que não tinham posição social em seus reinos e somente serviram para o trabalho braçal, bruto como de um animal de tração.
A historiografia atual, com base em diversas fontes, defende que reis, rainhas e pessoas participantes das cortes de vários reinos foram escravizados. Alem disso, é comprovado que povos africanos detinham conhecimento do uso do solo através de técnicas diversas de plantio. O trabalho com a metalurgia e o domínio de grandes construções arquitetônicas, são outros exemplos do grau de evolução de grande parte desses povos.
Outro conceito que devemos reconsiderar é de que não existe apenas uma África, territorialmente falando, como se fosse um único país com características iguais. Estamos falando de um continente com especificidades culturais, geográficas e econômicas. Portanto, alem de falarmos “africanos” devemos reconhecer quais os grupos existentes, a exemplo dos Malês, Nagôs, Yorubás, Angolanos, Zulus e assim por diante.
De posse desses conhecimentos que abordam a visão da realidade dos negros que foram trazidos para o Brasil, nos permite reelaborar conceitos, construir uma nova visão antropológica sobre os africanos, diferente do que muitos livros didáticos de história de décadas passadas abordavam.
Se a interpretação equivocada da história africana e dos africanos, foi durante muito tempo o conteúdo aplicado na educação básica em nosso país, é fácil entender que o senso comum, sobre a importância dos negros, também seria equivocada. Durante décadas a educação formal reforçou o preconceito sobre o negro escravizado e conseguinte para os seus descendentes.
Culturalmente temos um país diverso, fato que nos coloca como uma referência em todo o planeta. Essa situação causa, em boa parte do povo brasileiro, o pertencimento e o sentimento de orgulho de ser brasileiro. Mas multiplicidade não é, necessariamente, igualdade.
Esse contexto de multiplicidade não reflete a inserção igualitária de todos na sociedade. Significa que não são oferecidas as mesmas oportunidades a todos os grupos étnicos formadores desse Brasil, especialmente aos negros e seus descendentes. 
Assim, o processo histórico que inseriu o negro na condição de escravizado no Brasil, propiciou um tratamento de segregação. Delimitou não somente de forma geográfica “os espaços” dos escravizados e dos senhores. A senzala ultrapassava seus limites físicos, impondo um olhar dos dominantes em todos os aspectos sociais. Mais de trezentos anos, compuseram a formação maldosa do senso comum no povo brasileiro fortalecendo a discriminação, o preconceito e racismo.
Exemplo clássico do racismo foi à segregação aplicada no regime governamental da África do Sul, onde o racismo protagonizou um dos mais horrorosos capítulos da história da humanidade. É certo que os parâmetros utilizados pelos colonizadores na África do Sul, divergem dos aspectos preconceituosos e racistas na contemporaneidade brasileira.
Se por um lado, é senso comum que nossa sociedade tem atitudes racistas que não promove equidade, por outro lado, não conseguimos detectar declaradamente os racistas. Em poucas palavras, temos uma sociedade racista, mas não visualizamos os racistas declarados.
Essa reflexão nos permite questionar a decantada democracia racial, onde todos os brasileiros teriam as mesmas oportunidades, pois somos um país miscigenado, que é bonito de se ver em época de carnaval ou em partidas de futebol.
Durante as últimas décadas, essa democracia vem sendo contestada pelos movimentos sociais negros, na tentativa de explicitar a dura realidade que os afrodescendentes enfrentam nas mais diversas áreas da nossa sociedade. A historiografia vem contribuindo com uma nova leitura sobre como o processo histórico contribuiu para o racismo velado, desqualificando a “democracia” acima descrita.
Algumas ações governamentais surgiram como reflexo das lutas históricas de movimentos negros no Brasil. Políticas públicas vêem contribuindo para uma nova leitura da condição dos negros na sociedade e na inserção de oportunidades para os negros.
Diante desse contexto, uma reflexão torna-se pertinente sobre o mito da democracia racial: Como podemos acreditar na democracia racial se nossa sociedade é constituída de oportunidades implacavelmente desiguais? Constata-se que existem altos índices de negros nos presídios? Se ainda temos níveis altíssimos de negros e afrodescendentes com baixa escolaridade?
Implementar nas escolas a Lei 10.639/03 e, recentemente, a Lei 11.645/08 que acrescenta à primeira a questão da história e cultura indígena, é criar condições para se repensar as questões de discriminação, preconceito e racismo nas unidades de ensino. É propiciar à comunidade escolar, a promoção de atitudes mais respeitosas sobre as questões étnicas, contribuindo para formação de uma nova sociedade com uma perspectiva equânime.
Para que o contexto escolar fique alinhado com construção da sociedade desejada, torna-se necessário que as equipes gestoras, pedagógicas, e os professores realmente desenvolvam atividades praticas que auxiliem aos estudantes refletirem sobre as relações étnico-raciais.
Desenvolver ações metodológicas que busquem modificar uma cultura velada de racismo, que se evidencia através de piadas, associações e posturas discriminatórias passa a ser um dos objetivos a serem inseridos no projeto político pedagógico de cada instituição escolar.
Ações pedagógicas como a comemoração dos dias 13 de maio e 20 de novembro devem provocar reflexões sobre a condição socioeconômica dos negros e das suas lutas pelo direito de ter as mesmas oportunidades na atualidade. Eventos sem propositura de reflexão são meros momentos que “se vai com o vento”. Portanto é recomendável que tais datas, sejam trabalhadas como culminância de um ciclo, uma jornada ou uma pesquisa orientada. Dessa forma, será resgatado o pertencimento e a alto estima dos grupos que se veem ali representados. 
Por fim, uma sociedade que investe na educação de forma democrática e participativa, valorando a diversidade étnica e cultural, demonstra uma preocupação com a prática do respeito às diferenças culturais, fortalecendo assim a educação para as relações étnico-raciais e uma sociedade a caminho da verdadeira cidadania.

[1] Marcos Vinícius Melo dos Anjos licenciado em história pela UFS, especialista em docência universitária, professor da Rede Pública Estadual desenvolvendo atividade de Técnico no Núcleo da Educação, da Diversidade e Cidadania – NEDIC/DED/SEED. Professor Assistente da Faculdade São Luís de França.  

2Lei sancionada no ano de 2003, pelo então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, que promove alteração na Lei de Diretrizes e Bases – LDB nos artigos 26-A, que institui nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e 79-B, que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.