Antônio Wanderley de Melo
Corrêa*
Ao
longo da história, a humanidade criou “pais” para as ciências, artes e
invenções tecnológicas. Assim, temos o pai da História (Heródoto), da Medicina
(Hipócrates), da aviação (Santos Dumont), do Rock brasileiro (Raul Seixas),
entre tantos outros. Em vários casos, esse título é disputado por mais de uma
personalidade.
O
cordel, gênero literário tão enraizado na cultura nordestina, também tem o seu
“pai”. Trata-se do paraibano de Pombal, Leandro Gomes de Barros, nascido em 19 de novembro de 1865 no sítio
Melancia.
No seu caso,
o título é praticamente inconteste, sendo ovacionado por outro grande poeta
popular, seu contemporâneo, João Martins Athayde como “o primeiro sem segundo”,
expressão consagrada até hoje entre os cordelistas, leitores e pesquisadores
daquele gênero literário. É considerado como o mais completo escritor brasileiro
da Literatura de Cordel, o maior poeta popular de todos os tempos, tendo
escrito aproximadamente 600 obras. É autor de vários clássicos e campeão
absoluto de vendas. Muitos dos seus títulos têm reedições ininterruptas até o
presente e ultrapassam a casa dos milhões de exemplares vendidos. Nenhum poeta
brasileiro vendeu e teve a sua obra propagada tanto quanto ele.
Na
adolescência, Leandro viveu na Vila de Teixeira/PB, onde conviveu com poetas
violeiros sertanejos, a exemplo de Ignácio da Catingueira, Romano da Mãe
d’Água, Silvino Pirauá, Bernardo Nogueira, Hugolino do Sabugi e Nicandro Nunes
da Costa. Pirauá, de Patos/PB, foi o primeiro a escrever romances em versos.
Leandro provavelmente
começou a escrever poemas em 1889, aos 24 anos. Mas somente em 1893 publicou
seus primeiros folhetos. Nesse período, os folhetos eram impressos em
tipografias de jornais no Recife/PE. Assim, o maior destaque foi formado pelo
quarteto Leandro, Pirauá, Francisco Chagas Batista e João Martins de Athayde.
Algum tempo depois, o segundo abandonou o Cordel para dedicar-se inteiramente
ao ofício de violeiro.
Na última
década do século 19, período fundamental do Cordel, foram estabelecidas as
regras de composição do gênero literário e formado o seu público fidelíssimo, o
povo camponês iletrado do sertão nordestino. O público do Cordel somente
começaria a diversificar-se nos anos 1960.
Depois de tornar-se
proprietário de uma pequena gráfica em 1906 ou 1907, a Typografia Perseverança,
os folhetos do “Pai do Cordel” se espalharam pelo Nordeste. Tornou-se assim, o primeiro
poeta editor do Brasil. Ao tempo no qual Recife começou a se tornar o centro de
propagação de folhetos da poesia popular. Leandro não somente imprimiu os
livretos de sua autoria, como também de outros poetas. Escrevia versos
diariamente, contratou distribuidores para vender malas de folhetos aos
“agentes”, que revendiam ao povo sertanejo e citadino em feiras, mercados,
portas de igreja e estações ferroviárias.
O
analfabetismo generalizado não era problema para que milhões de nordestinos
memorizassem os versos leandrinos e dos outros poetas do povo. Algum “letrado”
lia os poemas nos terreiros e alpendres das casas rústicas sertanejas para os
ouvidos atentos de mentes com memórias prodigiosas. Para os habitantes daquelas
vastidões, vivendo no isolamento da caatinga, o Cordel, além do lazer e do
despertar da fantasia, era o jornal, o meio de contato com o mundo “moderno”
distante. Para muitos, foi ainda a cartilha de alfabetização.
Leandro
não se limitou a escrever os temas em voga na sua época: gesta do gado,
cangaço, e lendas e romances relacionados à Europa medieval. Sua obra foi
magistralmente original e genuinamente brasileira, nordestina. Envolveu todos
os gêneros e modalidades de sua época: peleja, romance, gracejo, sátira e
crítica social. Escreveu poemas sobre assuntos cotidianos, verdadeiras reportagens
em versos; temas religiosos e políticos; sem esquecer os tradicionais como o
romanceiro, contos de fadas e de príncipes encantados e lendas européias. Quase
tudo ambientado na cultura sertaneja. Entre os temas prediletos, perpassava a
sua vasta obra, a mulher, a sogra e a cachaça. Escreveu no formato de estrofes
sextilhas, setilhas e décimas com versos de sete sílabas poética ou redondilha
maior.
Assim,
o “Mestre Leandro”, título atribuído a ele por muitos cordelistas das diversas
gerações, tornou-se o grande sistematizador da Literatura de Cordel do Brasil. Determinou
caminhos temáticos, estruturas das estrofes e estilos satíricos e críticos, que
são seguidos até a atualidade. O jovem cordelista e pesquisador deste gênero
literário, Marco Haurélio, afirma que Leandro “explorou e deu forma a todos os
gêneros e temas, preparando, assim, a estrada na qual os vates populares
transitam ainda hoje” [HAURÉLIO, Marco. Breve História da Literatura de Cordel.
São Paulo: Editora Claridade, 2010. P. 20].
Entre os
seus folhetos mais conhecidos, destacam-se: O Cavalo que Defecava Dinheiro,
História de Juvenal e o Dragão, História do Boi Misterioso, O Cachorro dos
Mortos, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Branca de Neve e o Soldado
Guerreiro, A Confissão de Antônio Silvino, A Vida de Pedro Cem, A Peleja de
Leandro Gomes Contra uma Velha de Sergipe, A Força do Amor, Os Sofrimentos de
Alzira, Como Antônio Silvino Fez o Diabo Chocar, História de São João da Cruz,
Como se Amansa Uma Sogra, Vida e Testamento de Cancão de Fogo, O Casamento e o
Divorcio da Lagartixa, O Casamento do Sapo, As Proezas de um Namorado Mofino, A
Mulher Roubada, Suspiros de um Sertanejo, O Soldado Jogador, A Donzela Teodora,
entre muitos outros.
Como leitor
sergipano aficionado pelo Cordel, chamou-me muito a atenção o folheto “A Peleja
de Leandro Gomes com uma Velha de Sergipe”. O qual li com volúpia. Nos versos satíricos do poema, ele fala de
uma sua andança pelo nosso estado, provavelmente distribuindo folhetos de sua
tipografia. Assim, teria sido desafiado por uma velha na pensão de “um tal
Felipe”. De forma magistral, Leandro versou com muito humor a peleja com a
velha mal humorada. A disputa girou em torno de problemas de relacionamento e
de responsabilidade entre o homem e a mulher. Surpreendido com a grande
capacidade de embate verbal da velha, o vate paraibano confessou com extrema
ironia: A velha me fez subir/ Onde nem
urubu vai,/ Andei numa dependurada,/ Já estava cai ou não cai;/ Ainda chamei
tio a gato,/ Tratei cachorro por pai. A peleja foi tão feroz e renhida que,
ao final, o “Pai do Cordel” desabafou: Quando
foi no outro dia,/ Arrumei-me, fui embora,/ Com medo que a tal serpente/
Tornasse a vir cá fora./ Jurei de não voltar mais/ Onde o tal Diabo mora. E
assim teria se despedido para sempre da terra sergipana.
Nos folhetos
de sua autoria, publicados pela Editora Luzeiro, um dos parágrafos do “Resumo
Biográfico do Autor”, o descreve como “De espírito crítico, satírico e
contestador. Em seus versos avaliou os desmandos de seu tempo, principalmente
políticos, religiosos e referentes à interferência estrangeira no Nordeste”.
No livro
“Vaqueiros e Cantadores”, Câmara Cascudo o descreveu como: “Baixo, grosso, de
olhos claros, o bigodão espesso, cabeça redonda, meio corcovado, risonho
contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista, parecia mais um
fazendeiro que um poeta, pleno de alegria, de graça e de oportunidade”.
Suas obras-primas
inspiraram outros grandes autores, a exemplo de Ariano Suassuna, que utilizou a
história do cavalo que defecava dinheiro no seu "Auto da
Compadecida". Foi considerado pelo folclorista Luiz da Câmara Cascudo o
mais lido dos escritores populares. Para Carlos Drumond de Andrade, Leandro foi
"o rei da poesia do sertão e do Brasil".
Leandro foi
preso em 1918 porque o chefe de polícia considerou afronta às autoridades
alguns dos versos da obra "O Punhal e a Palmatória", trama que
tratava de um senhor de engenho assassinado por um homem em quem teria dado uma
surra. A estrofe mais famosa do poema é contundente: Nós temos cinco
governos/ O primeiro o federal/ O segundo o do Estado/Terceiro o municipal/ O
quarto a palmatória/ E o quinto o velho punhal.
O “pai” dos
poetas cordelistas faleceu em Recife em 4 de março de 1918, durante uma
epidemia de gripe espanhola ou influenza. João Martins de Athayde, também poeta
popular e futuro editor de seus títulos, no folheto “A Pranteada Morte de
Leandro Gomes de Barros”, sintetizou a grandeza de sua obra: Poeta como Leandro/ Inda no Brasil não
criou/ Por ser um dos escritores/ Que mais livros registrou/ Canções não se
sabe quantas/ Foram seiscentas e tantas/ As obras que publicou.
(*) Licenciado em História pela UFS, professor das
redes públicas estadual (SEED) e municipal de Aracaju (SEMED/PMA), escritor de
livros didáticos regionais e cordelista.
[ Artigo publicado no “Jornal
do Dia” em 08 abr. 2014. Pg. 04 ]