sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A Lei 10.639 contribuindo para a desmistificação da democracia racial



Prof. Marcos Vinícius Melo dos Anjos1



No primeiro ano de governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei Federal 10.639/032, que determina a inclusão de conteúdos sobre História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, que representou uma atitude de coragem na contribuição para o combate a discriminação, ao preconceito e o racismo histórico existente na sociedade brasileira.
Entendemos que em uma sociedade com práticas de cidadania, que contemple a equidade e o respeito mutuo, não necessitaria criar uma lei cujo objetivo é a valoração de uma etnia coparticipe da construção de uma nação. Entretanto, a nossa realidade é herdeira de um processo histórico de humilhação e opressão física e psicológica. Assim, é preciso revisitar a formatação da exploração colonialista europeia, mais de perto da coroa portuguesa, para entender melhor essa herança.
A transferência à força de um grande número de africanos escravizados marcou de forma negativa, a formação do nosso povo. Durante muito tempo os compêndios abordavam somente o viés econômico desse momento histórico. Porém, é preciso pensar no significado dessa ação para o próprio povo africano, que foi envolvido em uma verdadeira diáspora à revelia a sua vontade.
É preciso desvelar a contextualização de que os africanos trazidos para o continente americano eram desprovidos de estrutura cognitiva, que não tinham posição social em seus reinos e somente serviram para o trabalho braçal, bruto como de um animal de tração.
A historiografia atual, com base em diversas fontes, defende que reis, rainhas e pessoas participantes das cortes de vários reinos foram escravizados. Alem disso, é comprovado que povos africanos detinham conhecimento do uso do solo através de técnicas diversas de plantio. O trabalho com a metalurgia e o domínio de grandes construções arquitetônicas, são outros exemplos do grau de evolução de grande parte desses povos.
Outro conceito que devemos reconsiderar é de que não existe apenas uma África, territorialmente falando, como se fosse um único país com características iguais. Estamos falando de um continente com especificidades culturais, geográficas e econômicas. Portanto, alem de falarmos “africanos” devemos reconhecer quais os grupos existentes, a exemplo dos Malês, Nagôs, Yorubás, Angolanos, Zulus e assim por diante.
De posse desses conhecimentos que abordam a visão da realidade dos negros que foram trazidos para o Brasil, nos permite reelaborar conceitos, construir uma nova visão antropológica sobre os africanos, diferente do que muitos livros didáticos de história de décadas passadas abordavam.
Se a interpretação equivocada da história africana e dos africanos, foi durante muito tempo o conteúdo aplicado na educação básica em nosso país, é fácil entender que o senso comum, sobre a importância dos negros, também seria equivocada. Durante décadas a educação formal reforçou o preconceito sobre o negro escravizado e conseguinte para os seus descendentes.
Culturalmente temos um país diverso, fato que nos coloca como uma referência em todo o planeta. Essa situação causa, em boa parte do povo brasileiro, o pertencimento e o sentimento de orgulho de ser brasileiro. Mas multiplicidade não é, necessariamente, igualdade.
Esse contexto de multiplicidade não reflete a inserção igualitária de todos na sociedade. Significa que não são oferecidas as mesmas oportunidades a todos os grupos étnicos formadores desse Brasil, especialmente aos negros e seus descendentes. 
Assim, o processo histórico que inseriu o negro na condição de escravizado no Brasil, propiciou um tratamento de segregação. Delimitou não somente de forma geográfica “os espaços” dos escravizados e dos senhores. A senzala ultrapassava seus limites físicos, impondo um olhar dos dominantes em todos os aspectos sociais. Mais de trezentos anos, compuseram a formação maldosa do senso comum no povo brasileiro fortalecendo a discriminação, o preconceito e racismo.
Exemplo clássico do racismo foi à segregação aplicada no regime governamental da África do Sul, onde o racismo protagonizou um dos mais horrorosos capítulos da história da humanidade. É certo que os parâmetros utilizados pelos colonizadores na África do Sul, divergem dos aspectos preconceituosos e racistas na contemporaneidade brasileira.
Se por um lado, é senso comum que nossa sociedade tem atitudes racistas que não promove equidade, por outro lado, não conseguimos detectar declaradamente os racistas. Em poucas palavras, temos uma sociedade racista, mas não visualizamos os racistas declarados.
Essa reflexão nos permite questionar a decantada democracia racial, onde todos os brasileiros teriam as mesmas oportunidades, pois somos um país miscigenado, que é bonito de se ver em época de carnaval ou em partidas de futebol.
Durante as últimas décadas, essa democracia vem sendo contestada pelos movimentos sociais negros, na tentativa de explicitar a dura realidade que os afrodescendentes enfrentam nas mais diversas áreas da nossa sociedade. A historiografia vem contribuindo com uma nova leitura sobre como o processo histórico contribuiu para o racismo velado, desqualificando a “democracia” acima descrita.
Algumas ações governamentais surgiram como reflexo das lutas históricas de movimentos negros no Brasil. Políticas públicas vêem contribuindo para uma nova leitura da condição dos negros na sociedade e na inserção de oportunidades para os negros.
Diante desse contexto, uma reflexão torna-se pertinente sobre o mito da democracia racial: Como podemos acreditar na democracia racial se nossa sociedade é constituída de oportunidades implacavelmente desiguais? Constata-se que existem altos índices de negros nos presídios? Se ainda temos níveis altíssimos de negros e afrodescendentes com baixa escolaridade?
Implementar nas escolas a Lei 10.639/03 e, recentemente, a Lei 11.645/08 que acrescenta à primeira a questão da história e cultura indígena, é criar condições para se repensar as questões de discriminação, preconceito e racismo nas unidades de ensino. É propiciar à comunidade escolar, a promoção de atitudes mais respeitosas sobre as questões étnicas, contribuindo para formação de uma nova sociedade com uma perspectiva equânime.
Para que o contexto escolar fique alinhado com construção da sociedade desejada, torna-se necessário que as equipes gestoras, pedagógicas, e os professores realmente desenvolvam atividades praticas que auxiliem aos estudantes refletirem sobre as relações étnico-raciais.
Desenvolver ações metodológicas que busquem modificar uma cultura velada de racismo, que se evidencia através de piadas, associações e posturas discriminatórias passa a ser um dos objetivos a serem inseridos no projeto político pedagógico de cada instituição escolar.
Ações pedagógicas como a comemoração dos dias 13 de maio e 20 de novembro devem provocar reflexões sobre a condição socioeconômica dos negros e das suas lutas pelo direito de ter as mesmas oportunidades na atualidade. Eventos sem propositura de reflexão são meros momentos que “se vai com o vento”. Portanto é recomendável que tais datas, sejam trabalhadas como culminância de um ciclo, uma jornada ou uma pesquisa orientada. Dessa forma, será resgatado o pertencimento e a alto estima dos grupos que se veem ali representados. 
Por fim, uma sociedade que investe na educação de forma democrática e participativa, valorando a diversidade étnica e cultural, demonstra uma preocupação com a prática do respeito às diferenças culturais, fortalecendo assim a educação para as relações étnico-raciais e uma sociedade a caminho da verdadeira cidadania.

[1] Marcos Vinícius Melo dos Anjos licenciado em história pela UFS, especialista em docência universitária, professor da Rede Pública Estadual desenvolvendo atividade de Técnico no Núcleo da Educação, da Diversidade e Cidadania – NEDIC/DED/SEED. Professor Assistente da Faculdade São Luís de França.  

2Lei sancionada no ano de 2003, pelo então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, que promove alteração na Lei de Diretrizes e Bases – LDB nos artigos 26-A, que institui nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e 79-B, que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. 

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