Prof. Marcos Vinícius Melo dos Anjos1
No primeiro ano de governo do ex-presidente
Luís Inácio Lula da Silva, foi sancionada a Lei Federal 10.639/032,
que determina a inclusão de conteúdos sobre História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana na Educação Básica, que representou uma atitude de coragem na
contribuição para o combate a discriminação, ao preconceito e o racismo
histórico existente na sociedade brasileira.
Entendemos que em uma sociedade com práticas
de cidadania, que contemple a equidade e o respeito mutuo, não necessitaria
criar uma lei cujo objetivo é a valoração de uma etnia coparticipe da construção
de uma nação. Entretanto, a nossa realidade é herdeira de um processo histórico
de humilhação e opressão física e psicológica. Assim, é preciso revisitar a
formatação da exploração colonialista europeia, mais de perto da coroa
portuguesa, para entender melhor essa herança.
A transferência à força de um grande número
de africanos escravizados marcou de forma negativa, a formação do nosso povo. Durante
muito tempo os compêndios abordavam somente o viés econômico desse momento
histórico. Porém, é preciso pensar no significado dessa ação para o próprio
povo africano, que foi envolvido em uma verdadeira diáspora à revelia a sua
vontade.
É preciso desvelar a contextualização de que
os africanos trazidos para o continente americano eram desprovidos de estrutura
cognitiva, que não tinham posição social em seus reinos e somente serviram para
o trabalho braçal, bruto como de um animal de tração.
A historiografia atual, com base em diversas
fontes, defende que reis, rainhas e pessoas participantes das cortes de vários
reinos foram escravizados. Alem disso, é comprovado que povos africanos
detinham conhecimento do uso do solo através de técnicas diversas de plantio. O
trabalho com a metalurgia e o domínio de grandes construções arquitetônicas,
são outros exemplos do grau de evolução de grande parte desses povos.
Outro conceito que devemos reconsiderar é de
que não existe apenas uma África, territorialmente falando, como se fosse um
único país com características iguais. Estamos falando de um continente com
especificidades culturais, geográficas e econômicas. Portanto, alem de falarmos
“africanos” devemos reconhecer quais os grupos existentes, a exemplo dos Malês,
Nagôs, Yorubás, Angolanos, Zulus e assim por diante.
De posse desses conhecimentos que abordam a
visão da realidade dos negros que foram trazidos para o Brasil, nos permite
reelaborar conceitos, construir uma nova visão antropológica sobre os
africanos, diferente do que muitos livros didáticos de história de décadas
passadas abordavam.
Se a interpretação equivocada da história
africana e dos africanos, foi durante muito tempo o conteúdo aplicado na
educação básica em nosso país, é fácil entender que o senso comum, sobre a
importância dos negros, também seria equivocada. Durante décadas a educação
formal reforçou o preconceito sobre o negro escravizado e conseguinte para os
seus descendentes.
Culturalmente temos um país diverso, fato que
nos coloca como uma referência em todo o planeta. Essa situação causa, em boa
parte do povo brasileiro, o pertencimento e o sentimento de orgulho de ser
brasileiro. Mas multiplicidade não é, necessariamente, igualdade.
Esse contexto de multiplicidade não reflete a
inserção igualitária de todos na sociedade. Significa que não são oferecidas as
mesmas oportunidades a todos os grupos étnicos formadores desse Brasil,
especialmente aos negros e seus descendentes.
Assim, o processo histórico que inseriu o
negro na condição de escravizado no Brasil, propiciou um tratamento de
segregação. Delimitou não somente de forma geográfica “os espaços” dos
escravizados e dos senhores. A senzala ultrapassava seus limites físicos,
impondo um olhar dos dominantes em todos os aspectos sociais. Mais de trezentos
anos, compuseram a formação maldosa do senso comum no povo brasileiro
fortalecendo a discriminação, o preconceito e racismo.
Exemplo clássico do racismo foi à segregação
aplicada no regime governamental da África do Sul, onde o racismo protagonizou
um dos mais horrorosos capítulos da história da humanidade. É certo que os
parâmetros utilizados pelos colonizadores na África do Sul, divergem dos
aspectos preconceituosos e racistas na contemporaneidade brasileira.
Se por um lado, é senso comum que nossa
sociedade tem atitudes racistas que não promove equidade, por outro lado, não
conseguimos detectar declaradamente os racistas. Em poucas palavras, temos uma
sociedade racista, mas não visualizamos os racistas declarados.
Essa reflexão nos permite questionar a
decantada democracia racial, onde todos os brasileiros teriam as mesmas
oportunidades, pois somos um país miscigenado, que é bonito de se ver em época
de carnaval ou em partidas de futebol.
Durante as últimas décadas, essa democracia
vem sendo contestada pelos movimentos sociais negros, na tentativa de
explicitar a dura realidade que os afrodescendentes enfrentam nas mais diversas
áreas da nossa sociedade. A historiografia vem contribuindo com uma nova
leitura sobre como o processo histórico contribuiu para o racismo velado,
desqualificando a “democracia” acima descrita.
Algumas ações governamentais surgiram como
reflexo das lutas históricas de movimentos negros no Brasil. Políticas públicas
vêem contribuindo para uma nova leitura da condição dos negros na sociedade e
na inserção de oportunidades para os negros.
Diante desse contexto, uma reflexão torna-se pertinente
sobre o mito da democracia racial: Como podemos acreditar na democracia racial
se nossa sociedade é constituída de oportunidades implacavelmente desiguais?
Constata-se que existem altos índices de negros nos presídios? Se ainda temos
níveis altíssimos de negros e afrodescendentes com baixa escolaridade?
Implementar nas escolas a Lei 10.639/03 e,
recentemente, a Lei 11.645/08 que acrescenta à primeira a questão da história e
cultura indígena, é criar condições para se repensar as questões de
discriminação, preconceito e racismo nas unidades de ensino. É propiciar à
comunidade escolar, a promoção de atitudes mais respeitosas sobre as questões
étnicas, contribuindo para formação de uma nova sociedade com uma perspectiva
equânime.
Para que o contexto escolar fique alinhado
com construção da sociedade desejada, torna-se necessário que as equipes
gestoras, pedagógicas, e os professores realmente desenvolvam atividades
praticas que auxiliem aos estudantes refletirem sobre as relações
étnico-raciais.
Desenvolver ações metodológicas que busquem
modificar uma cultura velada de racismo, que se evidencia através de piadas,
associações e posturas discriminatórias passa a ser um dos objetivos a serem
inseridos no projeto político pedagógico de cada instituição escolar.
Ações pedagógicas como a comemoração dos dias
13 de maio e 20 de novembro devem provocar reflexões sobre a condição
socioeconômica dos negros e das suas lutas pelo direito de ter as mesmas
oportunidades na atualidade. Eventos sem propositura de reflexão são meros
momentos que “se vai com o vento”. Portanto é recomendável que tais datas,
sejam trabalhadas como culminância de um ciclo, uma jornada ou uma pesquisa
orientada. Dessa forma, será resgatado o pertencimento e a alto estima dos
grupos que se veem ali representados.
Por fim, uma sociedade que investe na
educação de forma democrática e participativa, valorando a diversidade étnica e
cultural, demonstra uma preocupação com a prática do respeito às diferenças
culturais, fortalecendo assim a educação para as relações étnico-raciais e uma
sociedade a caminho da verdadeira cidadania.
[1] Marcos
Vinícius Melo dos Anjos licenciado em história pela UFS, especialista em
docência universitária, professor da Rede Pública Estadual desenvolvendo
atividade de Técnico no Núcleo da Educação, da Diversidade e Cidadania –
NEDIC/DED/SEED. Professor Assistente da Faculdade São Luís de França.
2Lei sancionada
no ano de 2003, pelo então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva,
que promove alteração na Lei de Diretrizes e Bases – LDB nos artigos 26-A, que
institui nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e 79-B,
que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como Dia Nacional da
Consciência Negra.
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