quarta-feira, 9 de abril de 2014

Leandro Gomes de Barros: o "Pai do Cordel"


Antônio Wanderley de Melo Corrêa*
 
            Ao longo da história, a humanidade criou “pais” para as ciências, artes e invenções tecnológicas. Assim, temos o pai da História (Heródoto), da Medicina (Hipócrates), da aviação (Santos Dumont), do Rock brasileiro (Raul Seixas), entre tantos outros. Em vários casos, esse título é disputado por mais de uma personalidade.
            O cordel, gênero literário tão enraizado na cultura nordestina, também tem o seu “pai”. Trata-se do paraibano de Pombal, Leandro Gomes de Barros, nascido em 19 de novembro de 1865 no sítio Melancia.
No seu caso, o título é praticamente inconteste, sendo ovacionado por outro grande poeta popular, seu contemporâneo, João Martins Athayde como “o primeiro sem segundo”, expressão consagrada até hoje entre os cordelistas, leitores e pesquisadores daquele gênero literário. É considerado como o mais completo escritor brasileiro da Literatura de Cordel, o maior poeta popular de todos os tempos, tendo escrito aproximadamente 600 obras. É autor de vários clássicos e campeão absoluto de vendas. Muitos dos seus títulos têm reedições ininterruptas até o presente e ultrapassam a casa dos milhões de exemplares vendidos. Nenhum poeta brasileiro vendeu e teve a sua obra propagada tanto quanto ele.
Na adolescência, Leandro viveu na Vila de Teixeira/PB, onde conviveu com poetas violeiros sertanejos, a exemplo de Ignácio da Catingueira, Romano da Mãe d’Água, Silvino Pirauá, Bernardo Nogueira, Hugolino do Sabugi e Nicandro Nunes da Costa. Pirauá, de Patos/PB, foi o primeiro a escrever romances em versos.
Leandro provavelmente começou a escrever poemas em 1889, aos 24 anos. Mas somente em 1893 publicou seus primeiros folhetos. Nesse período, os folhetos eram impressos em tipografias de jornais no Recife/PE. Assim, o maior destaque foi formado pelo quarteto Leandro, Pirauá, Francisco Chagas Batista e João Martins de Athayde. Algum tempo depois, o segundo abandonou o Cordel para dedicar-se inteiramente ao ofício de violeiro.
Na última década do século 19, período fundamental do Cordel, foram estabelecidas as regras de composição do gênero literário e formado o seu público fidelíssimo, o povo camponês iletrado do sertão nordestino. O público do Cordel somente começaria a diversificar-se nos anos 1960.
Depois de tornar-se proprietário de uma pequena gráfica em 1906 ou 1907, a Typografia Perseverança, os folhetos do “Pai do Cordel” se espalharam pelo Nordeste. Tornou-se assim, o primeiro poeta editor do Brasil. Ao tempo no qual Recife começou a se tornar o centro de propagação de folhetos da poesia popular. Leandro não somente imprimiu os livretos de sua autoria, como também de outros poetas. Escrevia versos diariamente, contratou distribuidores para vender malas de folhetos aos “agentes”, que revendiam ao povo sertanejo e citadino em feiras, mercados, portas de igreja e estações ferroviárias.
O analfabetismo generalizado não era problema para que milhões de nordestinos memorizassem os versos leandrinos e dos outros poetas do povo. Algum “letrado” lia os poemas nos terreiros e alpendres das casas rústicas sertanejas para os ouvidos atentos de mentes com memórias prodigiosas. Para os habitantes daquelas vastidões, vivendo no isolamento da caatinga, o Cordel, além do lazer e do despertar da fantasia, era o jornal, o meio de contato com o mundo “moderno” distante. Para muitos, foi ainda a cartilha de alfabetização.     
            Leandro não se limitou a escrever os temas em voga na sua época: gesta do gado, cangaço, e lendas e romances relacionados à Europa medieval. Sua obra foi magistralmente original e genuinamente brasileira, nordestina. Envolveu todos os gêneros e modalidades de sua época: peleja, romance, gracejo, sátira e crítica social. Escreveu poemas sobre assuntos cotidianos, verdadeiras reportagens em versos; temas religiosos e políticos; sem esquecer os tradicionais como o romanceiro, contos de fadas e de príncipes encantados e lendas européias. Quase tudo ambientado na cultura sertaneja. Entre os temas prediletos, perpassava a sua vasta obra, a mulher, a sogra e a cachaça. Escreveu no formato de estrofes sextilhas, setilhas e décimas com versos de sete sílabas poética ou redondilha maior.
            Assim, o “Mestre Leandro”, título atribuído a ele por muitos cordelistas das diversas gerações, tornou-se o grande sistematizador da Literatura de Cordel do Brasil. Determinou caminhos temáticos, estruturas das estrofes e estilos satíricos e críticos, que são seguidos até a atualidade. O jovem cordelista e pesquisador deste gênero literário, Marco Haurélio, afirma que Leandro “explorou e deu forma a todos os gêneros e temas, preparando, assim, a estrada na qual os vates populares transitam ainda hoje” [HAURÉLIO, Marco. Breve História da Literatura de Cordel. São Paulo: Editora Claridade, 2010. P. 20].
Entre os seus folhetos mais conhecidos, destacam-se: O Cavalo que Defecava Dinheiro, História de Juvenal e o Dragão, História do Boi Misterioso, O Cachorro dos Mortos, Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, Branca de Neve e o Soldado Guerreiro, A Confissão de Antônio Silvino, A Vida de Pedro Cem, A Peleja de Leandro Gomes Contra uma Velha de Sergipe, A Força do Amor, Os Sofrimentos de Alzira, Como Antônio Silvino Fez o Diabo Chocar, História de São João da Cruz, Como se Amansa Uma Sogra, Vida e Testamento de Cancão de Fogo, O Casamento e o Divorcio da Lagartixa, O Casamento do Sapo, As Proezas de um Namorado Mofino, A Mulher Roubada, Suspiros de um Sertanejo, O Soldado Jogador, A Donzela Teodora, entre muitos outros.
Como leitor sergipano aficionado pelo Cordel, chamou-me muito a atenção o folheto “A Peleja de Leandro Gomes com uma Velha de Sergipe”. O qual li com volúpia.  Nos versos satíricos do poema, ele fala de uma sua andança pelo nosso estado, provavelmente distribuindo folhetos de sua tipografia. Assim, teria sido desafiado por uma velha na pensão de “um tal Felipe”. De forma magistral, Leandro versou com muito humor a peleja com a velha mal humorada. A disputa girou em torno de problemas de relacionamento e de responsabilidade entre o homem e a mulher. Surpreendido com a grande capacidade de embate verbal da velha, o vate paraibano confessou com extrema ironia: A velha me fez subir/ Onde nem urubu vai,/ Andei numa dependurada,/ Já estava cai ou não cai;/ Ainda chamei tio a gato,/ Tratei cachorro por pai. A peleja foi tão feroz e renhida que, ao final, o “Pai do Cordel” desabafou: Quando foi no outro dia,/ Arrumei-me, fui embora,/ Com medo que a tal serpente/ Tornasse a vir cá fora./ Jurei de não voltar mais/ Onde o tal Diabo mora. E assim teria se despedido para sempre da terra sergipana.
Nos folhetos de sua autoria, publicados pela Editora Luzeiro, um dos parágrafos do “Resumo Biográfico do Autor”, o descreve como “De espírito crítico, satírico e contestador. Em seus versos avaliou os desmandos de seu tempo, principalmente políticos, religiosos e referentes à interferência estrangeira no Nordeste”.
No livro “Vaqueiros e Cantadores”, Câmara Cascudo o descreveu como: “Baixo, grosso, de olhos claros, o bigodão espesso, cabeça redonda, meio corcovado, risonho contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista, parecia mais um fazendeiro que um poeta, pleno de alegria, de graça e de oportunidade”.  
Suas obras-primas inspiraram outros grandes autores, a exemplo de Ariano Suassuna, que utilizou a história do cavalo que defecava dinheiro no seu "Auto da Compadecida". Foi considerado pelo folclorista Luiz da Câmara Cascudo o mais lido dos escritores populares. Para Carlos Drumond de Andrade, Leandro foi "o rei da poesia do sertão e do Brasil".
Leandro foi preso em 1918 porque o chefe de polícia considerou afronta às autoridades alguns dos versos da obra "O Punhal e a Palmatória", trama que tratava de um senhor de engenho assassinado por um homem em quem teria dado uma surra. A estrofe mais famosa do poema é contundente: Nós temos cinco governos/ O primeiro o federal/ O segundo o do Estado/Terceiro o municipal/ O quarto a palmatória/ E o quinto o velho punhal.
O “pai” dos poetas cordelistas faleceu em Recife em 4 de março de 1918, durante uma epidemia de gripe espanhola ou influenza. João Martins de Athayde, também poeta popular e futuro editor de seus títulos, no folheto “A Pranteada Morte de Leandro Gomes de Barros”, sintetizou a grandeza de sua obra: Poeta como Leandro/ Inda no Brasil não criou/ Por ser um dos escritores/ Que mais livros registrou/ Canções não se sabe quantas/ Foram seiscentas e tantas/ As obras que publicou.

(*) Licenciado em História pela UFS, professor das redes públicas estadual (SEED) e municipal de Aracaju (SEMED/PMA), escritor de livros didáticos regionais e cordelista.


[ Artigo publicado no “Jornal do Dia” em 08 abr. 2014. Pg. 04 ]

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