terça-feira, 18 de outubro de 2011

Folclore: etimologia e abrangências*

Antônio Wanderley de Melo Corrêa**

             Há praticamente uma unanimidade no que se refere ao significado da tradução do termo folk lore, bem como o conceito que adquiriu no Brasil. Significado e conceito disseminados nos livros didáticos das disciplinas sociais e até mesmo em publicações científicas. Tendo por consequência a repetição infatigável na escola e em muitos outros espaços da vida social e cultural.
            E por falar em cultura, o folclore é largamente confundido com a cultura popular. Preocupado com esses problemas de compreensão do senso comum em torno do assunto, me arriscarei a trilhar neste terreno escorregadio e fragmentado.
            O termo folclore é o aportuguesamento da expressão folk lore atribuída ao inglês Willian John Thoms sob o pseudônimo de Ambrose Merton, expressada em um artigo na revista The Athenaeum de Londres, publicado em 22 de agosto de 1846, substituindo a expressão “antiguidades populares” em uso desde o final do século XVIII. E em antônimo a book lore, a ciência livresca e intelectual, o conhecimento científico. [EDELWEISS, Frederico. Apontamentos de folclore. Salvador: EDUFAB, 2001. P. 17].
            A “unanimidade” traduz folk = povo e lore = saber. A “sabedoria popular”.
            Mesmo não sendo especialista no idioma e na cultura anglo-saxônica, basta consultar um bom dicionário de inglês, para se ver demolido o conceito consagrado. “Sabedoria popular” ou “saber do povo” é uma tradução simplista, pior, distorcida e distanciada do real significado. Senão vejamos: FOLK – Art, stories, customs etc are traditional and typical of the ordinary people who live in a particular area. [ LONGMAN. Dictionary of contemporany English. Barcelona: Cayfosa, 1995. P. 545]; LORE – Know ledge or information about a subject, for example nature or magic, that is not griten down but is passed from person. (…). [LONGMAM, 1995. P. 850]. 
            Numa tradução um tanto sumária da fusão de folk com lore, percebe-se que o significado original da expressão de Thoms é bem mais amplo: Conhecimento de artes, estórias e costumes tradicionais transmitidos oralmente por uma população que habita em uma área específica. Portanto folk não é simplesmente o “povo”, mas uma comunidade de uma área específica (aldeia, lugarejo, bairro, cidade pequena). E lore não se resume a “saber”, mas sim ao saber oral, tradicional e fantasioso.
            A compreensão mais atenta do significado etimológico a expressão ajuda no entendimento do que vem a ser e como surge um fato folclórico.
            Enquanto nos países europeus o conhecimento tradicional de folk predomina a literatura oral: contos, lendas, mitos e superstições, no Brasil o folclore possui uma amplitude mais diversa. Na própria literatura folclórica, além das manifestações já citadas, ainda possuímos o repente, o desafio de viola, a anedota e a piada, o trava-línguas, a advinha, as cantigas de roda e as expressões regionais. São também considerados fatos folclóricos o artesanato ou ergologia tradicional em cerâmica, madeira, papel, couro, fibras vegetais, metais, tecidos e alinhavos; os grupos, folguedos e altos, que existem incomensuravelmente pelos Brasis adentro.
            Quanto à confusão entre folclore e cultura popular, a mesma nasce de uma premissa: todo o saber ou conhecimento popular é folclórico.
            Muitos pensadores renomados, inconsciente ou não, reforçaram esta idéia. A cultura popular não é sinônima de folclore. Este é parte daquela. É a sua vertente lúdica, fantástica e tradicional.
            O saber do povo não se resume à fantasia, à imitação e à tradição, pois se assim muitos o concebem, o fazem influenciados por preconceito. Indiretamente compreendem que o povo não é capaz de pensar e agir seriamente, de responder aos desafios da existência. É fundamental o entendimento que a sabedoria e a criatividade extrapolam o lore. O conceito consagrado “saber, pensar e agir de um povo”, reforça a confusão. A tênue fronteira que separa o folclore da cultura popular é outro fator de equívocos. Assim, é bastante aceitável recorrer à ilustração da cultura popular brasileira enquanto um imenso caldeirão, no qual ferve uma infinidade de ingredientes. Muitos dos quais folclóricos, outros não. Difícil separar rigidamente a mistura. Pois cultura é criação e recriação permanente dos grupos humanos de diferentes etnias, origens geográficas, matizes e classes. E falar do humano é levar em conta contradição, paradoxo, subjetividade, complexidade, transformação.
            O que é sabido pelo povo, que vai além da tradição, da lúdica e da fantasia, trata-se obviamente da cultura popular não folclórica.
            Entende-se cultura popular com sendo “aquela parte da cultura produzida pelo povo para o próprio povo”. [CALDAS, Waldenyr. Cultura. 4ª Ed. São Paulo: Global, 1991. P. 69].O “povo” aqui compreendido como os setores sociais pobres, assalariados ou subempregados do campo e do meio urbano.
            Outra questão é de abrangência geográfica do fato folclórico. Voltando ao significado original da expressão de Thoms, o “povo” de que se fala é o who live in a particular área, ou seja, de uma comunidade específica: um bairro, um povoado, uma aldeia, uma pequena cidade. Assim, seguindo essa compreensão, quando se fala de um “folclore nordestino”, trata-se de uma referência ao repertório geral das manifestações folclóricas específicas das pequenas comunidades englobadas na área político-geográfica do Nordeste brasileiro. O universo do folclore não é um tecido uniforme com cor e textura únicas, mas uma imensa colcha de pequenos retalhos multicores e multiformes. Falar de um folclore sergipano é falar da diversidade. Porque as manifestações são comunitárias, de pessoas que se conhecem, que vivem juntas in a particular área, muito embora os sergipanos as concebam com suas, mais por direito de que de fato, como elo de identidade regional plasmada por difusões em mídia, na escola e em eventos do calendário cultural.
            Pontilhando alguns exemplos no mapa do folclore sergipano, observa-se que o Parafuso é um folguedo peculiar da cidade de Lagarto; a cerâmica produzida pelos índios Xokós na ilha de São Pedro (Porto da Folha) é diferente da produzida em Itabaianinha, que por sua vez difere da confeccionada em Santana do São Francisco (antiga Carrapicho). Cada uma possuindo características próprias; o Cacumbí de Laranjeiras é diverso, em ritmo, coreografia, cores e formas, aos de Japaratuba.
            As expressões folclóricas não se repetem integralmente no tempo e muito menos no espaço. Mas toda essa diversidade tem como fundamento, propósito e substância o fato de as pessoas brincarem para dizerem a elas mesmas e aos outros quem são e como são. E essa brincadeira é algo que temos que levar muito a sério.

(*)Artigo publicado no jornal Gazeta de Sergipe em 23 ago. 2003. P. 06. Revisado em outubro de 2010.
(**) Licenciado em História pela UFS pela UFS e professor das redes públicas estadual (SEED) e municipal (SEMED/PMA).    

    

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